dimanche 23 mai 2010

feijoada, bossa nova e racismo


Domingo fui numa feijoada no apartamento de um amigo, em Paris. Entre os que lá estavam, destacava-se a figura de um octagenário. Curioso, comunicativo e simpático, Robert (Rôbér) não parava de interagir com os mais jovens. Falou das disposições astrais (ele é astrólogo), disse que foi amigo de Marlon Brando (“um gênio!”), do pai de Sarkozy (“muito mais inteligente que o filho”), que conheceu Getúlio Vargas e outros figurões da história brasileira (“nenhum mérito meu, pois naquele tempo todos os estrangeiros ilustres que vinham a Paris acabavam transitando num pequeno grupo do qual eu fazia parte”). Alternava a falação com ataques certeiros na caipirinha. E, quando esta acabou, não hesitou em molhar o bico na cerveja. Servida a mesa, Robert empapuçou-se de farofa. Decerto que apreciou o feijão, a couve, a laranja e o arroz. Mas naquela noite sua paixão mais pungente foi a farofa. O francês entregou-se com ardor ao acompanhamento e fez dele o verdadeiro protagonista da feijoada.

E eis que fez-se o silêncio na sala de estar. Alguns suspiros isolados sacudiam ocasionalmente o ar parado. Panelas vazias eram o índice de corpos exaustos, empenhados na dura batalha da digestão. Cada bucho, brasileiro ou não, envergava-se diante do peso daquela maçaroca de lombinho, paio, carne seca, feijão preto... Alguém comentou, em francês, que a feijoada tinha sido inventada pelos escravos brasileiros. Uma leseira melancólica tomou conta de todos. Pairava no ar, volatilizada, uma irresistível e inominável “vontade de rede”. Foi um momento de pouca inteligência. Até Robert calou-se, subitamente esvaziado de assuntos. O anfitrião tomou então a sábia decisão de colocar uma musiquinha. Bolero, chansons francesas, standards americanos. Todo mundo gostou. Foi quando o timbre camurça de Emílio Santiago tocou nossos tímpanos, cantando Corcovado, de Tom Jobim. Ah, o Brasil... pensei com cara de bocó. Tomo um susto: Robert havia se levantado e dançava, jogando pernas e braços ao ritmo da música. Lembrava o grego Zorba. O povo parou pra ver. Aplausos. Sentindo que ainda detinha o monopólio das atenções, o ancião se pronuncia: “a música a mais inteligente, a mais sensual de todas, é a música brasileira”. Depois, ato contínuo, diz que ela é fruto da mestiçagem de línguas e culturas no Brasil. Comparou com o caso da América do Norte, onde também a mestiçagem havia produzido o jazz. E, por fim, levantou jocosamente velhos clichês sobre o nosso caráter festivo: “no Brasil ninguém trabalha, porque logo alguém começa a batucar e aí todo mundo dança”! Ah, o Brasil... exaltei com uma ternura bocó, o corpo abandonado sobre a poltrona.

X

No dia seguinte, terminei a leitura do recém-lançado “Aqui Ninguém é Branco”(Liv Sovik), que analisa as relações raciais no terreno da música popular brasileira. Devo admitir, o texto me irritou. Por motivos vários que não conseguirei abordar no curto espaço deste blog. Mas, fundamentalmente, porque embora a autora tenha razão sobre a maioria das avaliações que faz do lado tenebroso, abominável do Brasil, as saídas e os pontos-de-vista que propõe, embora bem-intencionados, talvez até irrefutavelmente realistas, não me convencem. Não me convencem porque creio que tendem a enfraquecer ou simplificar demais a experiência do país. Porque retiram dele o pouco que lhe restou de carga utópica. Isso se vincula, no texto, a uma clara desvalorização da mestiçagem, vista como “a linha de fuga” que “nega a existência de negros e esconde a existência de brancos”, como um “discurso” que “permite que os que falam desde a perspectiva branca possam brincar de ser populares”. Em outras palavras, o discurso da mestiçagem (“aqui ninguém é branco”) tende a mascarar a opressiva hierarquia que há séculos estrutura o Brasil. Fica-se com a impressão (a autora jamais diz isso), de que tudo aquilo que não é denúncia desse estado desigual, relato da opressão, tudo aquilo que aparentemente não parte dessa tensão formadora (ou que a encobre), que não aspira ao reconhecimento de nossa cisão social - reconhecimento que possibilita uma melhor identificação, no promíscuo quadro brasileiro, do opressor e do oprimido - que tudo isso perde, hoje, muito do seu valor. Torna-se o reflexo distante, a nostalgia molenga de um país que deixou de ser, ou jamais foi (“Ah, o Brasil...”). Ou puro cinismo branco. Pior ainda: tem-se a impressão (o livro não diz isso!) de que as canções que entoaram essa utopia acabaram por contribuir de algum modo para o torpor conciliatório que sempre inibiu “a verdadeira mudança” – ajudando na construção de um mito que atrapalha e retarda a resolução do problema ancestral das hierarquias raciais e sociais. Que mito é esse? O de um país unificado pelo afeto, indiferente aos matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria. Será que para promover justiça social teremos que abrir mão desse projeto de Brasil?

Sob esse ponto de vista é mais do que compreensível que a bossa nova seja abordada pela autora de modo pouco lisonjeiro. Ressalta-se não o alcance de suas conquistas estéticas ou a singularidade de sua visão de mundo, mas as suas “limitações eurocêntricas”, “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje sem preconceitos ou caricaturas de feminilidade”. Ao evidenciar o consenso favorável de historiadores e críticos em torno da bossa nova, Liv Sovik coloca-se como voz dissonante (ao lado de Tinhorão) para desvendar a “aparente branquitude mundial da bossa nova”, em seu cosmopolitismo cool de classe média. A moça do corpo dourado do sol de Ipanema é devidamente setorizada (“branco-mestiça”), tornando-se o ícone do “ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas”. Para a autora, “repensar a tradição cosmopolita brasileira, sem nostalgia pelas relações sociais do passado, significa dar as costas para a contraluz em que vemos a Garota de Ipanema, pois é essa luz sublime, praiana, que ofusca as relações de poder, marcadas pela desigualdade econômica, de gênero e racial”.

Recentemente fiquei sabendo que os astronautas americanos escutavam no cockpit da nave, no momento em que desciam na lua, a gravação de The Girl From Ipanema, com o violão de João Gilberto e a voz de Astrud. Não acho um fato de todo irrelevante. Fico pensando se realmente teríamos a ganhar em dar as costas para essa “luz sublime, praiana”. Ou se não é justamente dela que viria nossa contribuição mais radical e doce para a humanidade. Reduzir novamente a bossa nova a uma música de garotos brancos da classe média é dar um passo atrás no pensamento cultural. Denunciar seus “limites eurocêntricos” e “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje” não deixa de ser uma prova de quão superficial é o entendimento que se tem ainda hoje sobre ela – pois a música de Tom e João só foi o que foi justamente porque ousou ir além dessas questões. É não entender o lugar utópico de onde brotou (e brota) uma boa parte de nosso cancioneiro, de Ary e Caymmi a Caetano e Chico. Prefiro o ponto de vista de Lorenzo Mammì: a música de Tom Jobim (a bossa nova em seu melhor) é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu. É preciso saber se ainda queremos manter acesa a chama dessa promessa, se teremos a força e a disposição de realizá-la. Robert, o velho dançarino, a compreendeu e acolheu. Sovik, não.

mardi 11 mai 2010

o camisa 10


Foi na Copa do Mundo de 1986 que pela primeira vez senti que era brasileiro. É uma das lembranças mais nítidas que tenho de minha infância. Eu tinha oito anos de idade e lembro que fomos para casa de uma tia assistir ao jogo Brasil e França. O resto todos sabem: nossa seleção perdeu de forma dramática, nos pênaltis. Impressionante como a agitação em torno das Copas serve de marco na vida brasileira. Como diria Nelson Rodrigues, o menino de 1986 está enterrado na minha carne como um sapo de macumba. Não me lembro direito dos jogos que ganhamos antes de enfrentar a França; lembro apenas da tarde em que fomos derrotados. É a ruptura que nos marca, seja ela oriunda da grande vitória ou da grande derrota. Lembro do abatimento que tomou conta de todos depois que o time Francês converteu seu último pênalti. Uma tristeza que eu nunca vira antes. Pelo que dizem, a dor de 1986 foi café pequeno perto daquela de 1982 – este sim o grande trauma futebolístico da geração dos anos 1980, comparável somente, dizem, ao absurdo inenarrável (inimaginável, sim) da Copa de 1950. Me agrada a idéia de que o Maracanã tenha sido inaugurado com uma grande ferida – a derrota para o Uruguai na final. Pois quem nunca foi derrotado é uma boa besta (mais uma vez Nelson). Assim como o fato de que a nossa tão aclamada festividade tenha sido (e continue sendo) erigida sobre terríveis desastres. Isso torna a alegria mais depurada, mais curtida, mais intensa e sábia, porque trágica. Se nossas misérias são insofismáveis, nossa intensa vocação para a alegria não é menos real. De passagem pelo Rio nos anos 70, o cineasta Pasolini sacou tudo: “A pátria desgraçada, devotada sem escolha à felicidade”.

Voltemos a 1986. Como eu dizia, o sentimento de ser brasileiro surgia junto com a dor e impotência de nossa derrota. Me senti parte daquilo, padecendo da mesma desilusão, precipitando do mesmo sonho. Adicione-se a isso uma pitada de injustiça, pois foi uma daquelas tardes em que o Destino conspira contra nós. Hoje, revendo partes do jogo no Youtube, tenho a mesma sensação: o Brasil abriu o placar com um gol primoroso, enquanto Platini o empatou num lance banal de oportunismo. E se o Zico não tivesse perdido aquele pênalti no fim da partida? Pergunta maldita... Logo ele! Os brasileiros que mais sofreram com aquele jogo foram os flamenguistas. Uma espécie de dupla derrota. Depois do trauma de 82, lá estava o nosso Galinho de Quintino no epicentro de mais uma frustração nacional. Isso me marcou muito. Zico foi meu primeiro herói. Seus gols, suas cobranças de falta, sua figura magra no uniforme vermelho e negro, seu nome veloz e diferente (zzzzzico!!), seu carisma fora e dentro de campo e a mítica de suas vitórias pelo Flamengo habitaram fundo minhas fantasias infantis. No jogo de botão, o melhor do time era sempre batizado de Zico. Queríamos ser o Zico. E queríamos que ele se tornasse o herói da seleção.

Azar dos brasileiros. Desforra dos rubro-negros. No ano seguinte ao fracasso da Copa, Zico voltou ao Flamengo e tomou de assalto o Campeonato Brasileiro. Era um time de gala, com Bebeto, Zinho, Leonardo, Andrade, Renato Gaúcho, Júnior, Edinho... E eu tava no Maracanã lotado, no primeiro jogo da semifinal contra o Atlético Mineiro, 1x0, gol do Bebeto, o estádio inteiro entoando hinos, gritando Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo... Voltei para a casa triunfante, embriagado de multidão, certo de que seríamos campeões, tremendo de afeto pelo Galinho. E não deu outra: fomos campeões (em cima do Inter).

Pois bem. Muito tempo se passou. O Flamengo foi caindo, e eu fui me desinteressando pouco a pouco do futebol. O próprio Zico se tornou um outro Zico, ainda muito querido, mas um tanto triste, sorumbático, meio sem graça... E eis que o esquecimento jogou seu veludo negro sobre esses fatos, e uma nova constelação de heróis brasileiros começou a pintar em minha adolescência, quase todos ligados a música popular. E foi justamente um deles que me levou de volta ao Galinho. Um dia, já com quase trinta anos na cara, ouvi “Camisa 10 da Gávea”. Jorge Ben é o melhor pintor da corte futebolística. Espécie de Goya, de Velásquez da canção, ninguém se compara a ele na hora de traçar o perfil de um jogador, de uma jogada, o clima de uma torcida. No dia em que escutei o “Camisa 10” fui arremessado de volta à mitologia de minha infância. O toque de violão percussivo, com os atabaques ao lado, a cuíca, o tema da flauta, o apito....aquilo me emocionou pra chuchu. Vi Zico ressurgir do limbo de minhas primeiras recordações, novamente jovem, ágil, vigoroso e nobre, encantando as multidões com eternos gols de placa. Era o retrato perfeito daquilo que o Galinho foi, e continua sendo, na minh’alma infantil. O herói trágico, malfadado, e não obstante, ou por isso mesmo, fascinante. “Pode não ser o jogador perfeito/ mas a sua malícia o faz com que seja lembrado/ pois mesmo quando não está inspirado/ ele procura a inspiração”. A compreensão de que foi o compromisso de Zico com a beleza que o fez ser profundamente amado pelo povo de sua época. Em quatro minutos e cinco segundos, Jorge Ben restituiu à minha vida a aura mágica da infância. Para quem foi flamenguista nos anos 80, a palavra Zico ainda vibra em alguma corda próxima a esperança, alegria, sentido de vida, desejo de beleza e poesia. E é por isso que somos seus eternos fãs.

Obs: Há pouco tempo atrás, num festival de jazz no Rio de janeiro, perguntaram ao Marcelo D2 se ele era fã da Stacey Kent. Sua resposta foi: “Não. Fã mesmo eu sou é do Zico”.