No fim de novembro toquei num café ao norte de Paris. Fizemos uma espécie de “sarau brasileiro”, no qual algumas participações ensaiadas (mas não muito), contracenavam com canjas espontâneas. A base era simplíssima: violão e flauta e mais as vozes femininas.
Diga-se sem nenhum pedantismo que, apesar do esquema mambembe, a coisa funcionou bem. O pequenino café “Aux Copains” ficou abarrotado de gente. Muitos sentaram-se no chão. A música, mesmo quando não era conhecida do público, ficou em primeiro plano durante quase todo o tempo, dominando as atenções. Quando as vozes erguiam-se acima dela, ouviam-se logo reclamações. Tive a sensação de que foi criada uma espécie de comunhão afetiva no local, que a todos colocava na condição de participantes de um evento único, vivo. Nos dias seguintes recebi várias manifestações espontâneas de pessoas me dizendo o quanto haviam gostado daquela noite.
Fiquei pensando: afinal, o que fez o evento realmente acontecer? Decerto, alguns fatores. O menos relevante foi minha performance. Gripado e sem cancha de palco, cantei mal. O repertório ajudou, claro, ao evocar a entidade chameguenta, lânguida e vivaz da musica popular brasileira. A dinâmica de cantoras que se alternavam comigo ao microfone também contribuiu, renovando as atenções (“quem é que vai cantar agora?”). Mas o principal, ao meu ver, ficou por conta da criação de um contexto propício ao encontro em torno da canção. O aconchego do café, a penumbra da luz de velas, a informalidade do evento, a alegria das pessoas, tudo isso participou da música. Porque música não é apenas a execução técnica de uma peça sonora, mas a criação de um acontecimento coletivo. Não havia um palco bem delimitado que separasse o público dos músicos e as próprias canjas improvisadas criavam a impressão de que tudo estava misturado. As pessoas sentiram-se dentro do evento, como figuras integrantes de uma paisagem musical. Já não importava muito se o cantor desafinava um pouco.
Ora, isso aponta para a discussão em torno dos atuais modos de escuta. O assunto é complexo, mas algo me diz que o modelo do ouvinte silencioso, engessado numa cadeira, fruindo atenciosamente da polissemia de letras inteligentes e da sutileza de acordes dissonantes – ao que parece este modelo está gasto. No mínimo, cansado. É possível que o público de hoje, sobretudo os jovens, esteja esperando outra coisa. Talvez a música tenha se tornado – ou tenha voltado a ser – o objeto em torno do qual se constroem encontros. Objeto capaz de criar atmosferas afetivas. O forró e o samba se beneficiam disso. Mais do que estilos musicais para serem ouvidos, reforçaram sua aura de evento (onde se pode dançar, beber cerveja e encontrar pessoas ao mesmo tempo em que se ouve música). Irrequieto e bombardeado de estímulos, o espectador atual seria atraído por algo mais participativo, que o inclua: a música não mais como simples informação sonora, mas como experiência vivida. É possível ver nisso o sintoma de uma regressão da escuta (no sentido de Adorno), de um empobrecimento da experiência musical. Pode ser... Mas podemos também pensar numa revalorização daquilo que o musicólogo John Blacking destacou como qualidade apreciada e almejada na música de certas etnias africanas: a saber, seu “poder de unir as pessoas em irmandade”.