dimanche 16 janvier 2011

e agora, MPB?

Caros leitores,

Aí vai um texto sobre o atual momento da canção (e das artes) no Brasil. Foi escrito por um querido e irrequieto amigo. Vou ilustrá-lo com uma obra do insubmisso Picasso - o pintor dos confrontos! - uma releitura desabusada do clássico Almoço na relva, de Manet. Concordando ou não, espero que gostem.

P.


Quem tem memória não precisa de saudosismo

Odeio saudosismo, ele é estéril. Impede-nos de ver e analisar a realidade a nossa volta como ela é. Afinal, se o referencial de bom está no antes, o depois será sempre uma cópia mal feita do que veio.

A música popular do mundo está saudosista; mas a MPB está doente de saudosismo. A geração que nasceu próxima a 1980 e, portanto, produz música desde 2000 em média, sofre de “referencialismo”, veneração das influências e identificação exagerada com estéticas anteriores, o que compromete de maneira grave sua capacidade criativa. Falta a essas gerações, mais de uma, já que estamos em 2010, o que um cineasta francês amigo meu, fã até a alma de MPB, chama de “resource propre”, ou seja, uma conexão com as coisas do seu mundo e as suas próprias idéias, que servem justamente para tornar única, legítima e sedutora determinada forma de expressão.

A memória para o criador só é válida se trouxer potência, se for pra broxá-lo, é melhor o esquecimento. A figura do músico popular brasileiro está irritantemente fundida a do pesquisador. Estão tiamaricotando a MPB. Poetas, compositores de canção, intérpretes e instrumentistas todos têm hoje um ponto em comum: adoração por uma década ou mais, situada em algum lugar do passado, que serve como um tipo de bússola, de mapa, um guia quatro-rodas de por onde andar e para onde seguir.

Qual o problema? Todos. O salto no escuro, alma gêmea da originalidade, a ousadia, outro lado da laranja criativa, o risco, irmão camarada do êxito, estão confortavelmente adormecidos, balançando na rede doce do saudosismo, seguros e confortáveis. A maior parte da força criativa da nossa música está voltada para a manutenção do passado; e quem está lidando com o farto material que o presente nos apresenta? Ninguém. Ou melhor, a música voltada unicamente para o mercado, que padece de falta de conteúdo. Além, é claro, de alguns compositores da periferia, que por vivenciarem uma situação social sui generis, como é o caso dos funkeiros, fogem da imitação barata do rap americano e acabam sendo antropofágicos, o que lhes dá a vantagem de produzir algo original.

Porém, tenhamos a coragem de dizer que o funk é um retrato 3x4 da realidade. Sua amplitude abrange um universo extremamente regional e específico. A MPB, com sua gama infinita de cores, classes e regiões sempre foi um campo fértil e de batalha, para as mais diferentes propostas e lutas estéticas, políticas, raciais, culturais e artísticas, que vão muito além do pitoresco.

Mas por onde anda essa galera? Dormindo na lapa. A lapa, legal demais pra sair à noite, é o túmulo da criatividade das novas gerações. Lá, encontram-se saudosistas de todas as idades para dar um show bizarro de reverência ao passado. Cada um com a sua década escolhida – alguns escolhem todas – procuram cantar e tocar à imagem e semelhança de seus mestres, e quando raramente compõem usam palavras, linhas melódicas, situações que lhes põem de joelhos frente à tradição. A lapa é um mix de ritmos, do samba ao eletrônico, passando por rock, salsa e samba-reggae, mas entre você no buraco que for, vai se deparar com alguém travestido de ontem, achando-se moderno por ser retrô.

Nada está acontecendo no planeta Terra. Tirando um preto na presidência do maior e mais racista país do mundo; um operário que comandou a mais desigual das grandes economias, mulheres presidentas por todo o canto, uma confusão de papéis entre os sexos jamais vista na história dos relacionamentos, uma rede que une todos em tempo real, uma ciência que mistura ratos e aves, uma miríade de casamentos poligâmicos, liberação sexual X países que ainda vivem eras medievais, discussão sobre a legalização das drogas, milícia, tráfico, poesia, caos, sem falar no meio ambiente sendo trucidado a passos largos, ou no amor, cada vez mais estrangeiro. E em meio a essa tsunami energética, essa bomba de cafeína social: nós, artistas em silêncio. Cantando a “nostalgia”, a “orgia”, “os braços castos”, vestidos com suspensórios na alma.

Ora, é claro que isso é um erro! Rockeiros vintões venerando bandas em que todos os integrantes já morreram de overdose, PELO AMOR DE DEUS – que o diabo os tenha! Poetas do meu Brasil, do mundo, apareçam. Vomitem nas referências, matem-nas, a música eletrônica não dá conta da alma humana, a música orgânica precisa do seu depoimento, a sua geração precisa.

– A classe média, sobre todas, necessita recuperar seu caráter artístico próprio –

Mas quero dizer logo: isso não é culpa exclusiva dos artistas da canção. Há uma crise ainda pior que a da produção, que é a crise da audição.

É, meu amigo, você que consome música, você que é viciado no ontem, você; você financia o saudosismo. Diga não a ele. Memória não é escravidão, é potência!

Sobre a crise da audição há muito o que dizer, mas falarei depois, tô cansado agora. Já adianto, porém: ela é DE (fu) DOER!

Ah; eu sou Gustavo Sant’Anna - compositor e jornalista

www.myspace/gustavosantanna.com