dimanche 23 septembre 2012
chico e os olhos do carrasco: de paratodos a parapoucos
dimanche 16 janvier 2011
e agora, MPB?
Caros leitores,
Aí vai um texto sobre o atual momento da canção (e das artes) no Brasil. Foi escrito por um querido e irrequieto amigo. Vou ilustrá-lo com uma obra do insubmisso Picasso - o pintor dos confrontos! - uma releitura desabusada do clássico Almoço na relva, de Manet. Concordando ou não, espero que gostem.
P.
Quem tem memória não precisa de saudosismo
Odeio saudosismo, ele é estéril. Impede-nos de ver e analisar a realidade a nossa volta como ela é. Afinal, se o referencial de bom está no antes, o depois será sempre uma cópia mal feita do que veio.
A música popular do mundo está saudosista; mas a MPB está doente de saudosismo. A geração que nasceu próxima a 1980 e, portanto, produz música desde 2000 em média, sofre de “referencialismo”, veneração das influências e identificação exagerada com estéticas anteriores, o que compromete de maneira grave sua capacidade criativa. Falta a essas gerações, mais de uma, já que estamos em 2010, o que um cineasta francês amigo meu, fã até a alma de MPB, chama de “resource propre”, ou seja, uma conexão com as coisas do seu mundo e as suas próprias idéias, que servem justamente para tornar única, legítima e sedutora determinada forma de expressão.
A memória para o criador só é válida se trouxer potência, se for pra broxá-lo, é melhor o esquecimento. A figura do músico popular brasileiro está irritantemente fundida a do pesquisador. Estão tiamaricotando a MPB. Poetas, compositores de canção, intérpretes e instrumentistas todos têm hoje um ponto em comum: adoração por uma década ou mais, situada em algum lugar do passado, que serve como um tipo de bússola, de mapa, um guia quatro-rodas de por onde andar e para onde seguir.
Qual o problema? Todos. O salto no escuro, alma gêmea da originalidade, a ousadia, outro lado da laranja criativa, o risco, irmão camarada do êxito, estão confortavelmente adormecidos, balançando na rede doce do saudosismo, seguros e confortáveis. A maior parte da força criativa da nossa música está voltada para a manutenção do passado; e quem está lidando com o farto material que o presente nos apresenta? Ninguém. Ou melhor, a música voltada unicamente para o mercado, que padece de falta de conteúdo. Além, é claro, de alguns compositores da periferia, que por vivenciarem uma situação social sui generis, como é o caso dos funkeiros, fogem da imitação barata do rap americano e acabam sendo antropofágicos, o que lhes dá a vantagem de produzir algo original.
Porém, tenhamos a coragem de dizer que o funk é um retrato 3x4 da realidade. Sua amplitude abrange um universo extremamente regional e específico. A MPB, com sua gama infinita de cores, classes e regiões sempre foi um campo fértil e de batalha, para as mais diferentes propostas e lutas estéticas, políticas, raciais, culturais e artísticas, que vão muito além do pitoresco.
Mas por onde anda essa galera? Dormindo na lapa. A lapa, legal demais pra sair à noite, é o túmulo da criatividade das novas gerações. Lá, encontram-se saudosistas de todas as idades para dar um show bizarro de reverência ao passado. Cada um com a sua década escolhida – alguns escolhem todas – procuram cantar e tocar à imagem e semelhança de seus mestres, e quando raramente compõem usam palavras, linhas melódicas, situações que lhes põem de joelhos frente à tradição. A lapa é um mix de ritmos, do samba ao eletrônico, passando por rock, salsa e samba-reggae, mas entre você no buraco que for, vai se deparar com alguém travestido de ontem, achando-se moderno por ser retrô.
Nada está acontecendo no planeta Terra. Tirando um preto na presidência do maior e mais racista país do mundo; um operário que comandou a mais desigual das grandes economias, mulheres presidentas por todo o canto, uma confusão de papéis entre os sexos jamais vista na história dos relacionamentos, uma rede que une todos em tempo real, uma ciência que mistura ratos e aves, uma miríade de casamentos poligâmicos, liberação sexual X países que ainda vivem eras medievais, discussão sobre a legalização das drogas, milícia, tráfico, poesia, caos, sem falar no meio ambiente sendo trucidado a passos largos, ou no amor, cada vez mais estrangeiro. E em meio a essa tsunami energética, essa bomba de cafeína social: nós, artistas em silêncio. Cantando a “nostalgia”, a “orgia”, “os braços castos”, vestidos com suspensórios na alma.
Ora, é claro que isso é um erro! Rockeiros vintões venerando bandas em que todos os integrantes já morreram de overdose, PELO AMOR DE DEUS – que o diabo os tenha! Poetas do meu Brasil, do mundo, apareçam. Vomitem nas referências, matem-nas, a música eletrônica não dá conta da alma humana, a música orgânica precisa do seu depoimento, a sua geração precisa.
– A classe média, sobre todas, necessita recuperar seu caráter artístico próprio –
Mas quero dizer logo: isso não é culpa exclusiva dos artistas da canção. Há uma crise ainda pior que a da produção, que é a crise da audição.
É, meu amigo, você que consome música, você que é viciado no ontem, você; você financia o saudosismo. Diga não a ele. Memória não é escravidão, é potência!
Sobre a crise da audição há muito o que dizer, mas falarei depois, tô cansado agora. Já adianto, porém: ela é DE (fu) DOER!
Ah; eu sou Gustavo Sant’Anna - compositor e jornalista
www.myspace/gustavosantanna.com
dimanche 23 mai 2010
feijoada, bossa nova e racismo

Domingo fui numa feijoada no apartamento de um amigo, em Paris. Entre os que lá estavam, destacava-se a figura de um octagenário. Curioso, comunicativo e simpático, Robert (Rôbér) não parava de interagir com os mais jovens. Falou das disposições astrais (ele é astrólogo), disse que foi amigo de Marlon Brando (“um gênio!”), do pai de Sarkozy (“muito mais inteligente que o filho”), que conheceu Getúlio Vargas e outros figurões da história brasileira (“nenhum mérito meu, pois naquele tempo todos os estrangeiros ilustres que vinham a Paris acabavam transitando num pequeno grupo do qual eu fazia parte”). Alternava a falação com ataques certeiros na caipirinha. E, quando esta acabou, não hesitou em molhar o bico na cerveja. Servida a mesa, Robert empapuçou-se de farofa. Decerto que apreciou o feijão, a couve, a laranja e o arroz. Mas naquela noite sua paixão mais pungente foi a farofa. O francês entregou-se com ardor ao acompanhamento e fez dele o verdadeiro protagonista da feijoada.
E eis que fez-se o silêncio na sala de estar. Alguns suspiros isolados sacudiam ocasionalmente o ar parado. Panelas vazias eram o índice de corpos exaustos, empenhados na dura batalha da digestão. Cada bucho, brasileiro ou não, envergava-se diante do peso daquela maçaroca de lombinho, paio, carne seca, feijão preto... Alguém comentou, em francês, que a feijoada tinha sido inventada pelos escravos brasileiros. Uma leseira melancólica tomou conta de todos. Pairava no ar, volatilizada, uma irresistível e inominável “vontade de rede”. Foi um momento de pouca inteligência. Até Robert calou-se, subitamente esvaziado de assuntos. O anfitrião tomou então a sábia decisão de colocar uma musiquinha. Bolero, chansons francesas, standards americanos. Todo mundo gostou. Foi quando o timbre camurça de Emílio Santiago tocou nossos tímpanos, cantando Corcovado, de Tom Jobim. Ah, o Brasil... pensei com cara de bocó. Tomo um susto: Robert havia se levantado e dançava, jogando pernas e braços ao ritmo da música. Lembrava o grego Zorba. O povo parou pra ver. Aplausos. Sentindo que ainda detinha o monopólio das atenções, o ancião se pronuncia: “a música a mais inteligente, a mais sensual de todas, é a música brasileira”. Depois, ato contínuo, diz que ela é fruto da mestiçagem de línguas e culturas no Brasil. Comparou com o caso da América do Norte, onde também a mestiçagem havia produzido o jazz. E, por fim, levantou jocosamente velhos clichês sobre o nosso caráter festivo: “no Brasil ninguém trabalha, porque logo alguém começa a batucar e aí todo mundo dança”! Ah, o Brasil... exaltei com uma ternura bocó, o corpo abandonado sobre a poltrona.
X
No dia seguinte, terminei a leitura do recém-lançado “Aqui Ninguém é Branco”(Liv Sovik), que analisa as relações raciais no terreno da música popular brasileira. Devo admitir, o texto me irritou. Por motivos vários que não conseguirei abordar no curto espaço deste blog. Mas, fundamentalmente, porque embora a autora tenha razão sobre a maioria das avaliações que faz do lado tenebroso, abominável do Brasil, as saídas e os pontos-de-vista que propõe, embora bem-intencionados, talvez até irrefutavelmente realistas, não me convencem. Não me convencem porque creio que tendem a enfraquecer ou simplificar demais a experiência do país. Porque retiram dele o pouco que lhe restou de carga utópica. Isso se vincula, no texto, a uma clara desvalorização da mestiçagem, vista como “a linha de fuga” que “nega a existência de negros e esconde a existência de brancos”, como um “discurso” que “permite que os que falam desde a perspectiva branca possam brincar de ser populares”. Em outras palavras, o discurso da mestiçagem (“aqui ninguém é branco”) tende a mascarar a opressiva hierarquia que há séculos estrutura o Brasil. Fica-se com a impressão (a autora jamais diz isso), de que tudo aquilo que não é denúncia desse estado desigual, relato da opressão, tudo aquilo que aparentemente não parte dessa tensão formadora (ou que a encobre), que não aspira ao reconhecimento de nossa cisão social - reconhecimento que possibilita uma melhor identificação, no promíscuo quadro brasileiro, do opressor e do oprimido - que tudo isso perde, hoje, muito do seu valor. Torna-se o reflexo distante, a nostalgia molenga de um país que deixou de ser, ou jamais foi (“Ah, o Brasil...”). Ou puro cinismo branco. Pior ainda: tem-se a impressão (o livro não diz isso!) de que as canções que entoaram essa utopia acabaram por contribuir de algum modo para o torpor conciliatório que sempre inibiu “a verdadeira mudança” – ajudando na construção de um mito que atrapalha e retarda a resolução do problema ancestral das hierarquias raciais e sociais. Que mito é esse? O de um país unificado pelo afeto, indiferente aos matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria. Será que para promover justiça social teremos que abrir mão desse projeto de Brasil?
Sob esse ponto de vista é mais do que compreensível que a bossa nova seja abordada pela autora de modo pouco lisonjeiro. Ressalta-se não o alcance de suas conquistas estéticas ou a singularidade de sua visão de mundo, mas as suas “limitações eurocêntricas”, “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje sem preconceitos ou caricaturas de feminilidade”. Ao evidenciar o consenso favorável de historiadores e críticos em torno da bossa nova, Liv Sovik coloca-se como voz dissonante (ao lado de Tinhorão) para desvendar a “aparente branquitude mundial da bossa nova”, em seu cosmopolitismo cool de classe média. A moça do corpo dourado do sol de Ipanema é devidamente setorizada (“branco-mestiça”), tornando-se o ícone do “ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas”. Para a autora, “repensar a tradição cosmopolita brasileira, sem nostalgia pelas relações sociais do passado, significa dar as costas para a contraluz em que vemos a Garota de Ipanema, pois é essa luz sublime, praiana, que ofusca as relações de poder, marcadas pela desigualdade econômica, de gênero e racial”.
Recentemente fiquei sabendo que os astronautas americanos escutavam no cockpit da nave, no momento em que desciam na lua, a gravação de The Girl From Ipanema, com o violão de João Gilberto e a voz de Astrud. Não acho um fato de todo irrelevante. Fico pensando se realmente teríamos a ganhar em dar as costas para essa “luz sublime, praiana”. Ou se não é justamente dela que viria nossa contribuição mais radical e doce para a humanidade. Reduzir novamente a bossa nova a uma música de garotos brancos da classe média é dar um passo atrás no pensamento cultural. Denunciar seus “limites eurocêntricos” e “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje” não deixa de ser uma prova de quão superficial é o entendimento que se tem ainda hoje sobre ela – pois a música de Tom e João só foi o que foi justamente porque ousou ir além dessas questões. É não entender o lugar utópico de onde brotou (e brota) uma boa parte de nosso cancioneiro, de Ary e Caymmi a Caetano e Chico. Prefiro o ponto de vista de Lorenzo Mammì: a música de Tom Jobim (a bossa nova em seu melhor) é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu. É preciso saber se ainda queremos manter acesa a chama dessa promessa, se teremos a força e a disposição de realizá-la. Robert, o velho dançarino, a compreendeu e acolheu. Sovik, não.
mardi 11 mai 2010
o camisa 10

Foi na Copa do Mundo de 1986 que pela primeira vez senti que era brasileiro. É uma das lembranças mais nítidas que tenho de minha infância. Eu tinha oito anos de idade e lembro que fomos para casa de uma tia assistir ao jogo Brasil e França. O resto todos sabem: nossa seleção perdeu de forma dramática, nos pênaltis. Impressionante como a agitação em torno das Copas serve de marco na vida brasileira. Como diria Nelson Rodrigues, o menino de 1986 está enterrado na minha carne como um sapo de macumba. Não me lembro direito dos jogos que ganhamos antes de enfrentar a França; lembro apenas da tarde em que fomos derrotados. É a ruptura que nos marca, seja ela oriunda da grande vitória ou da grande derrota. Lembro do abatimento que tomou conta de todos depois que o time Francês converteu seu último pênalti. Uma tristeza que eu nunca vira antes. Pelo que dizem, a dor de 1986 foi café pequeno perto daquela de 1982 – este sim o grande trauma futebolístico da geração dos anos 1980, comparável somente, dizem, ao absurdo inenarrável (inimaginável, sim) da Copa de 1950. Me agrada a idéia de que o Maracanã tenha sido inaugurado com uma grande ferida – a derrota para o Uruguai na final. Pois quem nunca foi derrotado é uma boa besta (mais uma vez Nelson). Assim como o fato de que a nossa tão aclamada festividade tenha sido (e continue sendo) erigida sobre terríveis desastres. Isso torna a alegria mais depurada, mais curtida, mais intensa e sábia, porque trágica. Se nossas misérias são insofismáveis, nossa intensa vocação para a alegria não é menos real. De passagem pelo Rio nos anos 70, o cineasta Pasolini sacou tudo: “A pátria desgraçada, devotada sem escolha à felicidade”.
Voltemos a 1986. Como eu dizia, o sentimento de ser brasileiro surgia junto com a dor e impotência de nossa derrota. Me senti parte daquilo, padecendo da mesma desilusão, precipitando do mesmo sonho. Adicione-se a isso uma pitada de injustiça, pois foi uma daquelas tardes em que o Destino conspira contra nós. Hoje, revendo partes do jogo no Youtube, tenho a mesma sensação: o Brasil abriu o placar com um gol primoroso, enquanto Platini o empatou num lance banal de oportunismo. E se o Zico não tivesse perdido aquele pênalti no fim da partida? Pergunta maldita... Logo ele! Os brasileiros que mais sofreram com aquele jogo foram os flamenguistas. Uma espécie de dupla derrota. Depois do trauma de 82, lá estava o nosso Galinho de Quintino no epicentro de mais uma frustração nacional. Isso me marcou muito. Zico foi meu primeiro herói. Seus gols, suas cobranças de falta, sua figura magra no uniforme vermelho e negro, seu nome veloz e diferente (zzzzzico!!), seu carisma fora e dentro de campo e a mítica de suas vitórias pelo Flamengo habitaram fundo minhas fantasias infantis. No jogo de botão, o melhor do time era sempre batizado de Zico. Queríamos ser o Zico. E queríamos que ele se tornasse o herói da seleção.
Azar dos brasileiros. Desforra dos rubro-negros. No ano seguinte ao fracasso da Copa, Zico voltou ao Flamengo e tomou de assalto o Campeonato Brasileiro. Era um time de gala, com Bebeto, Zinho, Leonardo, Andrade, Renato Gaúcho, Júnior, Edinho... E eu tava no Maracanã lotado, no primeiro jogo da semifinal contra o Atlético Mineiro, 1x0, gol do Bebeto, o estádio inteiro entoando hinos, gritando Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo... Voltei para a casa triunfante, embriagado de multidão, certo de que seríamos campeões, tremendo de afeto pelo Galinho. E não deu outra: fomos campeões (em cima do Inter).
Pois bem. Muito tempo se passou. O Flamengo foi caindo, e eu fui me desinteressando pouco a pouco do futebol. O próprio Zico se tornou um outro Zico, ainda muito querido, mas um tanto triste, sorumbático, meio sem graça... E eis que o esquecimento jogou seu veludo negro sobre esses fatos, e uma nova constelação de heróis brasileiros começou a pintar em minha adolescência, quase todos ligados a música popular. E foi justamente um deles que me levou de volta ao Galinho. Um dia, já com quase trinta anos na cara, ouvi “Camisa 10 da Gávea”. Jorge Ben é o melhor pintor da corte futebolística. Espécie de Goya, de Velásquez da canção, ninguém se compara a ele na hora de traçar o perfil de um jogador, de uma jogada, o clima de uma torcida. No dia em que escutei o “Camisa 10” fui arremessado de volta à mitologia de minha infância. O toque de violão percussivo, com os atabaques ao lado, a cuíca, o tema da flauta, o apito....aquilo me emocionou pra chuchu. Vi Zico ressurgir do limbo de minhas primeiras recordações, novamente jovem, ágil, vigoroso e nobre, encantando as multidões com eternos gols de placa. Era o retrato perfeito daquilo que o Galinho foi, e continua sendo, na minh’alma infantil. O herói trágico, malfadado, e não obstante, ou por isso mesmo, fascinante. “Pode não ser o jogador perfeito/ mas a sua malícia o faz com que seja lembrado/ pois mesmo quando não está inspirado/ ele procura a inspiração”. A compreensão de que foi o compromisso de Zico com a beleza que o fez ser profundamente amado pelo povo de sua época. Em quatro minutos e cinco segundos, Jorge Ben restituiu à minha vida a aura mágica da infância. Para quem foi flamenguista nos anos 80, a palavra Zico ainda vibra em alguma corda próxima a esperança, alegria, sentido de vida, desejo de beleza e poesia. E é por isso que somos seus eternos fãs.
Obs: Há pouco tempo atrás, num festival de jazz no Rio de janeiro, perguntaram ao Marcelo D2 se ele era fã da Stacey Kent. Sua resposta foi: “Não. Fã mesmo eu sou é do Zico”.
vendredi 11 décembre 2009
sarau em Paris
No fim de novembro toquei num café ao norte de Paris. Fizemos uma espécie de “sarau brasileiro”, no qual algumas participações ensaiadas (mas não muito), contracenavam com canjas espontâneas. A base era simplíssima: violão e flauta e mais as vozes femininas.
Diga-se sem nenhum pedantismo que, apesar do esquema mambembe, a coisa funcionou bem. O pequenino café “Aux Copains” ficou abarrotado de gente. Muitos sentaram-se no chão. A música, mesmo quando não era conhecida do público, ficou em primeiro plano durante quase todo o tempo, dominando as atenções. Quando as vozes erguiam-se acima dela, ouviam-se logo reclamações. Tive a sensação de que foi criada uma espécie de comunhão afetiva no local, que a todos colocava na condição de participantes de um evento único, vivo. Nos dias seguintes recebi várias manifestações espontâneas de pessoas me dizendo o quanto haviam gostado daquela noite.
Fiquei pensando: afinal, o que fez o evento realmente acontecer? Decerto, alguns fatores. O menos relevante foi minha performance. Gripado e sem cancha de palco, cantei mal. O repertório ajudou, claro, ao evocar a entidade chameguenta, lânguida e vivaz da musica popular brasileira. A dinâmica de cantoras que se alternavam comigo ao microfone também contribuiu, renovando as atenções (“quem é que vai cantar agora?”). Mas o principal, ao meu ver, ficou por conta da criação de um contexto propício ao encontro em torno da canção. O aconchego do café, a penumbra da luz de velas, a informalidade do evento, a alegria das pessoas, tudo isso participou da música. Porque música não é apenas a execução técnica de uma peça sonora, mas a criação de um acontecimento coletivo. Não havia um palco bem delimitado que separasse o público dos músicos e as próprias canjas improvisadas criavam a impressão de que tudo estava misturado. As pessoas sentiram-se dentro do evento, como figuras integrantes de uma paisagem musical. Já não importava muito se o cantor desafinava um pouco.
Ora, isso aponta para a discussão em torno dos atuais modos de escuta. O assunto é complexo, mas algo me diz que o modelo do ouvinte silencioso, engessado numa cadeira, fruindo atenciosamente da polissemia de letras inteligentes e da sutileza de acordes dissonantes – ao que parece este modelo está gasto. No mínimo, cansado. É possível que o público de hoje, sobretudo os jovens, esteja esperando outra coisa. Talvez a música tenha se tornado – ou tenha voltado a ser – o objeto em torno do qual se constroem encontros. Objeto capaz de criar atmosferas afetivas. O forró e o samba se beneficiam disso. Mais do que estilos musicais para serem ouvidos, reforçaram sua aura de evento (onde se pode dançar, beber cerveja e encontrar pessoas ao mesmo tempo em que se ouve música). Irrequieto e bombardeado de estímulos, o espectador atual seria atraído por algo mais participativo, que o inclua: a música não mais como simples informação sonora, mas como experiência vivida. É possível ver nisso o sintoma de uma regressão da escuta (no sentido de Adorno), de um empobrecimento da experiência musical. Pode ser... Mas podemos também pensar numa revalorização daquilo que o musicólogo John Blacking destacou como qualidade apreciada e almejada na música de certas etnias africanas: a saber, seu “poder de unir as pessoas em irmandade”.