mardi 11 mai 2010

o camisa 10


Foi na Copa do Mundo de 1986 que pela primeira vez senti que era brasileiro. É uma das lembranças mais nítidas que tenho de minha infância. Eu tinha oito anos de idade e lembro que fomos para casa de uma tia assistir ao jogo Brasil e França. O resto todos sabem: nossa seleção perdeu de forma dramática, nos pênaltis. Impressionante como a agitação em torno das Copas serve de marco na vida brasileira. Como diria Nelson Rodrigues, o menino de 1986 está enterrado na minha carne como um sapo de macumba. Não me lembro direito dos jogos que ganhamos antes de enfrentar a França; lembro apenas da tarde em que fomos derrotados. É a ruptura que nos marca, seja ela oriunda da grande vitória ou da grande derrota. Lembro do abatimento que tomou conta de todos depois que o time Francês converteu seu último pênalti. Uma tristeza que eu nunca vira antes. Pelo que dizem, a dor de 1986 foi café pequeno perto daquela de 1982 – este sim o grande trauma futebolístico da geração dos anos 1980, comparável somente, dizem, ao absurdo inenarrável (inimaginável, sim) da Copa de 1950. Me agrada a idéia de que o Maracanã tenha sido inaugurado com uma grande ferida – a derrota para o Uruguai na final. Pois quem nunca foi derrotado é uma boa besta (mais uma vez Nelson). Assim como o fato de que a nossa tão aclamada festividade tenha sido (e continue sendo) erigida sobre terríveis desastres. Isso torna a alegria mais depurada, mais curtida, mais intensa e sábia, porque trágica. Se nossas misérias são insofismáveis, nossa intensa vocação para a alegria não é menos real. De passagem pelo Rio nos anos 70, o cineasta Pasolini sacou tudo: “A pátria desgraçada, devotada sem escolha à felicidade”.

Voltemos a 1986. Como eu dizia, o sentimento de ser brasileiro surgia junto com a dor e impotência de nossa derrota. Me senti parte daquilo, padecendo da mesma desilusão, precipitando do mesmo sonho. Adicione-se a isso uma pitada de injustiça, pois foi uma daquelas tardes em que o Destino conspira contra nós. Hoje, revendo partes do jogo no Youtube, tenho a mesma sensação: o Brasil abriu o placar com um gol primoroso, enquanto Platini o empatou num lance banal de oportunismo. E se o Zico não tivesse perdido aquele pênalti no fim da partida? Pergunta maldita... Logo ele! Os brasileiros que mais sofreram com aquele jogo foram os flamenguistas. Uma espécie de dupla derrota. Depois do trauma de 82, lá estava o nosso Galinho de Quintino no epicentro de mais uma frustração nacional. Isso me marcou muito. Zico foi meu primeiro herói. Seus gols, suas cobranças de falta, sua figura magra no uniforme vermelho e negro, seu nome veloz e diferente (zzzzzico!!), seu carisma fora e dentro de campo e a mítica de suas vitórias pelo Flamengo habitaram fundo minhas fantasias infantis. No jogo de botão, o melhor do time era sempre batizado de Zico. Queríamos ser o Zico. E queríamos que ele se tornasse o herói da seleção.

Azar dos brasileiros. Desforra dos rubro-negros. No ano seguinte ao fracasso da Copa, Zico voltou ao Flamengo e tomou de assalto o Campeonato Brasileiro. Era um time de gala, com Bebeto, Zinho, Leonardo, Andrade, Renato Gaúcho, Júnior, Edinho... E eu tava no Maracanã lotado, no primeiro jogo da semifinal contra o Atlético Mineiro, 1x0, gol do Bebeto, o estádio inteiro entoando hinos, gritando Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo... Voltei para a casa triunfante, embriagado de multidão, certo de que seríamos campeões, tremendo de afeto pelo Galinho. E não deu outra: fomos campeões (em cima do Inter).

Pois bem. Muito tempo se passou. O Flamengo foi caindo, e eu fui me desinteressando pouco a pouco do futebol. O próprio Zico se tornou um outro Zico, ainda muito querido, mas um tanto triste, sorumbático, meio sem graça... E eis que o esquecimento jogou seu veludo negro sobre esses fatos, e uma nova constelação de heróis brasileiros começou a pintar em minha adolescência, quase todos ligados a música popular. E foi justamente um deles que me levou de volta ao Galinho. Um dia, já com quase trinta anos na cara, ouvi “Camisa 10 da Gávea”. Jorge Ben é o melhor pintor da corte futebolística. Espécie de Goya, de Velásquez da canção, ninguém se compara a ele na hora de traçar o perfil de um jogador, de uma jogada, o clima de uma torcida. No dia em que escutei o “Camisa 10” fui arremessado de volta à mitologia de minha infância. O toque de violão percussivo, com os atabaques ao lado, a cuíca, o tema da flauta, o apito....aquilo me emocionou pra chuchu. Vi Zico ressurgir do limbo de minhas primeiras recordações, novamente jovem, ágil, vigoroso e nobre, encantando as multidões com eternos gols de placa. Era o retrato perfeito daquilo que o Galinho foi, e continua sendo, na minh’alma infantil. O herói trágico, malfadado, e não obstante, ou por isso mesmo, fascinante. “Pode não ser o jogador perfeito/ mas a sua malícia o faz com que seja lembrado/ pois mesmo quando não está inspirado/ ele procura a inspiração”. A compreensão de que foi o compromisso de Zico com a beleza que o fez ser profundamente amado pelo povo de sua época. Em quatro minutos e cinco segundos, Jorge Ben restituiu à minha vida a aura mágica da infância. Para quem foi flamenguista nos anos 80, a palavra Zico ainda vibra em alguma corda próxima a esperança, alegria, sentido de vida, desejo de beleza e poesia. E é por isso que somos seus eternos fãs.

Obs: Há pouco tempo atrás, num festival de jazz no Rio de janeiro, perguntaram ao Marcelo D2 se ele era fã da Stacey Kent. Sua resposta foi: “Não. Fã mesmo eu sou é do Zico”.

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