
Domingo fui numa feijoada no apartamento de um amigo, em Paris. Entre os que lá estavam, destacava-se a figura de um octagenário. Curioso, comunicativo e simpático, Robert (Rôbér) não parava de interagir com os mais jovens. Falou das disposições astrais (ele é astrólogo), disse que foi amigo de Marlon Brando (“um gênio!”), do pai de Sarkozy (“muito mais inteligente que o filho”), que conheceu Getúlio Vargas e outros figurões da história brasileira (“nenhum mérito meu, pois naquele tempo todos os estrangeiros ilustres que vinham a Paris acabavam transitando num pequeno grupo do qual eu fazia parte”). Alternava a falação com ataques certeiros na caipirinha. E, quando esta acabou, não hesitou em molhar o bico na cerveja. Servida a mesa, Robert empapuçou-se de farofa. Decerto que apreciou o feijão, a couve, a laranja e o arroz. Mas naquela noite sua paixão mais pungente foi a farofa. O francês entregou-se com ardor ao acompanhamento e fez dele o verdadeiro protagonista da feijoada.
E eis que fez-se o silêncio na sala de estar. Alguns suspiros isolados sacudiam ocasionalmente o ar parado. Panelas vazias eram o índice de corpos exaustos, empenhados na dura batalha da digestão. Cada bucho, brasileiro ou não, envergava-se diante do peso daquela maçaroca de lombinho, paio, carne seca, feijão preto... Alguém comentou, em francês, que a feijoada tinha sido inventada pelos escravos brasileiros. Uma leseira melancólica tomou conta de todos. Pairava no ar, volatilizada, uma irresistível e inominável “vontade de rede”. Foi um momento de pouca inteligência. Até Robert calou-se, subitamente esvaziado de assuntos. O anfitrião tomou então a sábia decisão de colocar uma musiquinha. Bolero, chansons francesas, standards americanos. Todo mundo gostou. Foi quando o timbre camurça de Emílio Santiago tocou nossos tímpanos, cantando Corcovado, de Tom Jobim. Ah, o Brasil... pensei com cara de bocó. Tomo um susto: Robert havia se levantado e dançava, jogando pernas e braços ao ritmo da música. Lembrava o grego Zorba. O povo parou pra ver. Aplausos. Sentindo que ainda detinha o monopólio das atenções, o ancião se pronuncia: “a música a mais inteligente, a mais sensual de todas, é a música brasileira”. Depois, ato contínuo, diz que ela é fruto da mestiçagem de línguas e culturas no Brasil. Comparou com o caso da América do Norte, onde também a mestiçagem havia produzido o jazz. E, por fim, levantou jocosamente velhos clichês sobre o nosso caráter festivo: “no Brasil ninguém trabalha, porque logo alguém começa a batucar e aí todo mundo dança”! Ah, o Brasil... exaltei com uma ternura bocó, o corpo abandonado sobre a poltrona.
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No dia seguinte, terminei a leitura do recém-lançado “Aqui Ninguém é Branco”(Liv Sovik), que analisa as relações raciais no terreno da música popular brasileira. Devo admitir, o texto me irritou. Por motivos vários que não conseguirei abordar no curto espaço deste blog. Mas, fundamentalmente, porque embora a autora tenha razão sobre a maioria das avaliações que faz do lado tenebroso, abominável do Brasil, as saídas e os pontos-de-vista que propõe, embora bem-intencionados, talvez até irrefutavelmente realistas, não me convencem. Não me convencem porque creio que tendem a enfraquecer ou simplificar demais a experiência do país. Porque retiram dele o pouco que lhe restou de carga utópica. Isso se vincula, no texto, a uma clara desvalorização da mestiçagem, vista como “a linha de fuga” que “nega a existência de negros e esconde a existência de brancos”, como um “discurso” que “permite que os que falam desde a perspectiva branca possam brincar de ser populares”. Em outras palavras, o discurso da mestiçagem (“aqui ninguém é branco”) tende a mascarar a opressiva hierarquia que há séculos estrutura o Brasil. Fica-se com a impressão (a autora jamais diz isso), de que tudo aquilo que não é denúncia desse estado desigual, relato da opressão, tudo aquilo que aparentemente não parte dessa tensão formadora (ou que a encobre), que não aspira ao reconhecimento de nossa cisão social - reconhecimento que possibilita uma melhor identificação, no promíscuo quadro brasileiro, do opressor e do oprimido - que tudo isso perde, hoje, muito do seu valor. Torna-se o reflexo distante, a nostalgia molenga de um país que deixou de ser, ou jamais foi (“Ah, o Brasil...”). Ou puro cinismo branco. Pior ainda: tem-se a impressão (o livro não diz isso!) de que as canções que entoaram essa utopia acabaram por contribuir de algum modo para o torpor conciliatório que sempre inibiu “a verdadeira mudança” – ajudando na construção de um mito que atrapalha e retarda a resolução do problema ancestral das hierarquias raciais e sociais. Que mito é esse? O de um país unificado pelo afeto, indiferente aos matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria. Será que para promover justiça social teremos que abrir mão desse projeto de Brasil?
Sob esse ponto de vista é mais do que compreensível que a bossa nova seja abordada pela autora de modo pouco lisonjeiro. Ressalta-se não o alcance de suas conquistas estéticas ou a singularidade de sua visão de mundo, mas as suas “limitações eurocêntricas”, “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje sem preconceitos ou caricaturas de feminilidade”. Ao evidenciar o consenso favorável de historiadores e críticos em torno da bossa nova, Liv Sovik coloca-se como voz dissonante (ao lado de Tinhorão) para desvendar a “aparente branquitude mundial da bossa nova”, em seu cosmopolitismo cool de classe média. A moça do corpo dourado do sol de Ipanema é devidamente setorizada (“branco-mestiça”), tornando-se o ícone do “ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas”. Para a autora, “repensar a tradição cosmopolita brasileira, sem nostalgia pelas relações sociais do passado, significa dar as costas para a contraluz em que vemos a Garota de Ipanema, pois é essa luz sublime, praiana, que ofusca as relações de poder, marcadas pela desigualdade econômica, de gênero e racial”.
Recentemente fiquei sabendo que os astronautas americanos escutavam no cockpit da nave, no momento em que desciam na lua, a gravação de The Girl From Ipanema, com o violão de João Gilberto e a voz de Astrud. Não acho um fato de todo irrelevante. Fico pensando se realmente teríamos a ganhar em dar as costas para essa “luz sublime, praiana”. Ou se não é justamente dela que viria nossa contribuição mais radical e doce para a humanidade. Reduzir novamente a bossa nova a uma música de garotos brancos da classe média é dar um passo atrás no pensamento cultural. Denunciar seus “limites eurocêntricos” e “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje” não deixa de ser uma prova de quão superficial é o entendimento que se tem ainda hoje sobre ela – pois a música de Tom e João só foi o que foi justamente porque ousou ir além dessas questões. É não entender o lugar utópico de onde brotou (e brota) uma boa parte de nosso cancioneiro, de Ary e Caymmi a Caetano e Chico. Prefiro o ponto de vista de Lorenzo Mammì: a música de Tom Jobim (a bossa nova em seu melhor) é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu. É preciso saber se ainda queremos manter acesa a chama dessa promessa, se teremos a força e a disposição de realizá-la. Robert, o velho dançarino, a compreendeu e acolheu. Sovik, não.